terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Cruz e Sousa - Biografia, vida e obras

João da Cruz e Sousa nasceu em Desterro, atual Florianópolis. Filho de escravos alforriados pelo Marechal Guilherme Xavier de Sousa, seria acolhido pelo Marechal e sua esposa como o filho que não tinham. Foi educado na melhor escola secundária da região, mas com a morte dos protetores foi obrigado a largar os estudos e trabalhar.

Foi diretor do jornal abolicionista Tribuna Popular em 1881. Dois anos mais tarde, foi nomeado promotor público de Laguna (SC), no entanto, foi recusado logo em seguida por ser negro.

Em 1890 vai para o Rio de Janeiro, onde entra em contato com a poesia simbolista francesa e seus admiradores cariocas. Colabora em alguns jornais e, mesmo já bastante conhecido após a publicação de Missal e Broquéis (1893), as quais são consideradas o marco inicial do Simbolismo no Brasil que perduraria até 1922 com a Semana de Arte Moderna, só consegue arrumar um emprego miserável na Estrada de Ferro Central.


Casa-se com Gavita, também negra, com quem tem quatro filhos, dois dos quais vêm a falecer precocemente por tuberculose. Sua mulher enlouquece e passa vários períodos em hospitais psiquiátricos.

Foi o escritor quem cuidou da esposa, em casa mesmo. Essa é a temática de muitos poemas de Cruz e Sousa. A linguagem de Cruz e Sousa, herdada do Parnasianismo, é requintada, porém criativa, na medida em que dá ênfase à musicalidade dos versos por intermédio da exploração dos aspectos sonoros dos vocábulos.

Cruz e Sousa faleceu aos 36 anos, em 19 de março de 1898, vítima do agravamento no quadro de tuberculose.

Veja um trecho do poema “Cristais”, no qual é claro o uso da sinestesia, recurso estilístico que associa dois sentidos ou mais (audição, visão, olfato, etc.):

Mais claro e fino do que as finas pratas
o som da tua voz deliciava…
Na dolência velada das sonatas
como um perfume a tudo perfumava.

Era um som feito luz, eram volatas
em lânguida espiral que iluminava,
brancas sonoridades de cascatas…
Tanta harmonia melancolizava.

Filtros sutis de melodias, de ondas
de cantos volutuosos como rondas
de silfos leves, sensuais, lascivos…

Como que anseios invisíveis, mudos,
da brancura das sedas e veludos,
das virgindades, dos pudores vivos.



Principais obras de Cruz e Sousa


- Missal (prosa)
- Broquéis (poesia)
- Tropos e fantasias
- Faróis
- Últimos soneto
- Evocações
- Sorriso interior
- Triunfo Supremo
- Vida obscura

Características literárias de Cruz e Sousa

- No plano temático: a morte, a transcendência espiritual, a integração cósmica, o mistério, o sagrado, o conflito entre matéria e espírito, a angústia e a sublimação sexual, a escravidão e uma verdadeira obsessão por brilhos e pela cor branca;
- No plano formal: as sinestesias, as imagens surpreendentes, a sonoridade das palavras, a predominância de substantivos e o emprego de maiúsculas, utilizadas com a finalidade de dar um valor absoluto a certos termos e o uso metáforas

Trechos de obras de Cruz e Sousa


INEFÁVEL

Nada há que me domine e que me vença
Quando a minha alma mudamente acorda...
Ela rebenta em flor, ela transborda
Nos alvoroços da emoção imensa.
Sou como um Réu de celestial sentença,
Condenado do Amor, que se recorda
Do Amor e sempre no Silêncio borda
De estrelas todo o céu em que erra e pensa.

Claros, meus olhos tornam-se mais claros
E tudo vejo dos encantos raros
E de outras mais serenas madrugadas!

Todas as vozes que procuro e chamo
Ouço-as dentro de mim porque eu as amo
Na minha alma volteando arrebatadas
 

ANTÍFONA

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras
Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes ...

Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...
 


SIDERAÇÕES

Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados
De nuvens brancas a amplidão vestindo...
Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo...

Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta...

E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...

 

O BOTÃO DE ROSA

O campo abrira o seio às expansões frementes
das árvores senis, dos galhos viridentes.
Caía a tarde fresca
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.
A iluminada esfera
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,
Dava um brilho-cetim às verdes folhas d'hera.
No ar uma harmonia avigorada e casta,
No crânio uma vertigem
Duma ideia viril, duma eloquência vasta.

Tardes formosíssimas,
Ó grande livro aberto aos geniais artistas,
Como tanto alargais as crenças panteístas,
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.

Quanta vitalidade indefinida, quanta,
Na pequenina planta,
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,
Que misticismo, justos,
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano
Das árvores titãs, das árvores fecundas
Que tinham, como o oceano,
Febris palpitações intérminas, profundas.

Esplêndidas paisagens,
Opunha o largo campo às vistas deslumbradas.
As múrmuras ramagens,
À luz serena e terna, à luz do sol - que espadas
De fogo arremessava, em frêmitos nervosos,
Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,
Tinham falas de amor, segredos vacilantes
Finos como os brilhantes.

A música das aves
Cortava o éter calmo, em notas multiformes,
Límpidas e graves
Que estouravam no ar em convulsões enormes.
Aqui e além um rio
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo
Áspero e sombrio.
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo
E o espírito mudo,
Como um herói gigante avassalavam tudo...

Nuns madrigais risonhos
Abria-se o país fantástico dos sonhos.
Alavam-se os aromas
Leais, inexauríveis
Das largas e invisíveis Selváticas redomas.

A seiva rebentava
Em ondas - irrompia
Na doce e maviosa e plácida alegria
De uma ave que cantava,
Dos belos roseirais
Que ostentavam a flux as rosas virginais.

E as jubilosas franças
Dos arvoredos altos,
Rígidos, atléticos,
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos
Dumas vontades mansas.

A doce alacridade ia explodindo aos saltos.
E toda a natureza
Robusta de saúde e estrênua de grandeza
Libérrima e vital,
Erguia-se pujante, audaz e redentora,
No gérmen material da força criadora,
Dentre a vida selvagem, mística, animal...

Dos roseirais preciosos
Nos renques primorosos,
Numa linda roseira abria castamente,
Como um sonho de luz numa cabeça ardente,
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.
Tinha essa cor formosa,
Tinha essa cor da aurora,
Quando ensanguenta em rubro a vastidão sonora.

Era um botão feliz
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea
Que uma estrofe não diz.
Das pétalas macias,
Das pétalas sanguíneas,
Doces como harmonias
Brandas e velutíneas
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros,
Pela mansão do Bem, pelos espaços claros.
Perfumes excelentes,
Perfumes dos melhores
Perfumes bons de incógnitos Orientes.

Matéria, não deplores
O viver natural dos vegetais alegres;
Eles são mais ditosos
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;
E por mais que tu regres
O matéria fatal, a tua vida inteira,
No rigor da higiene;
E por mais que a maneira
Do teu grande existir, desse existir - perene
De ironias e pasmos,
Explosões de sarcasmos
Tu completes, matéria - ó humanidade ousada
Com a ciência altanada;
E por mais que no século,
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo,
Será sempre maior e exuberante e forte,
Ó matéria fatal,
Essa vida tão rica
Que se corporifica
Na valente coorte
Do poder vegetal.

Era um botão feliz,
Cuia roseira, impávida,
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos - ávida
De completa fragrância,
Palpitava com ânsia
Desde a própria raiz.

E entanto o sol tombara e triunfantemente
Como um supremo Rubens,
Jorrando à curvidade etérea do poente,
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,
Numa distribuição simpática de cores,
De tintas e de luzes
De galas e fulgores
Rubros como o estourar dos férvidos obuses.

O cérebro em nevrose,
No pasmo que precede a augusta apoteose
De uma excelsa visão perfeitamente bela,
De uma excelsa visão em límpidos doceis,
Exaltava o acabado artístico da Tela
E o gosto dos pincéis.

Caíam da amplidão em névoas singulares
Os pálidos crepúsculos.
Os fúlgidos altares
Do homem primitivo - a relva, o prado, o campo
Onde ele ia buscar a força de uma crença
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa,
Morriam de clarões - os poderosos músculos
Da fértil mãe de tudo - a natureza ingente -
Deixavam de bater. - O olhar do pirilampo
Oscilava, tremia - azul, fosforescente.

As sombras vinham, vinham,
Lembrando um batalhão d'espectros que caminham
E a casta nitidez sintética das cousas
Tomava a proporção das funerárias lousas.
Completara-se então o mais extraordinário,
O mais extravagante,
Dos fenômenos todos:
A noite. - Enfim descera a treva do Calvário,
A treva que envolveu o Cristo agonizante.

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.
A abóbada espaçosa, a física amplitude,
Mostrava a profundez da angústia de ataúde
De um operário pobre,
Quando se escuta o dobre
Amplíssimo e funéreo,
Sinistro e compassado,
Rolar pela mansão gloriosa do mistério,
Assim com um soluço aflito, estrangulado.

Devia ser, devia
Por uma noite assim,
Como esta noite igual,
Que derramou Maria
A lágrima da dor, - que o célebre Caim
Sentiu dentro do crânio as convulsões do Mal.

Mas o botão de rosa,
Traído pelo estranho zéfiro da sorte,
Rolou como uma cisma
Intensa e luminosa
Ardente e jovial em que a razão se abisma
E foi cair, cair no pélago da morte,
Em um dos mais raivosos,
Em um dos mais atrozes
Rios impetuosos,
Cheios de surdas vozes,
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,
Em meio à placidez
Dos astros no infinito
E à mesma irracional e fúnebre mudez.

Depois e além de tudo,
Além do grave aspecto inteiramente mudo,
Ao tempo que morria
O cândido botão - em um dos tantos galhos
Virentes da roseira - alegre no ar se abria
Um outro que ostentava as pétalas sedosas,
As pétalas gracis de cores deliciosas,
De cores ideais.
As auras musicais
Passavam-lhe de leve,
Nos tímidos rumores,
De um ósculo mais breve.

E dentre a exposição das delicadas flores,
Das rosas - o botão
Aberto ultimamente às cúpulas austeras,
Às plagas da esperança, a irmã das primaveras,
Pendido um quase nada, esbelto na roseira,
Mostrava aquela unção,
A ínclita maneira
De quem se glorifica
Subindo ao céu azul da majestade pura,
Da eterna exuberância,
Da fonte sempre rica,
Da esplêndida fartura
Da luz imaculada - a egrégia substância
Que faz das almas claras
Pela fecundidade olímpica do amor, Magníficas searas,
De onde se difunde à vida sempiterna,
À vida essencial, à lei que nos governa,
À idéia varonil do poeta sonhador.

A arte especialmente, esse prodígio, atriz,
Como o botão de rosa
Tão meigo e tão feliz,
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,
Na treva silenciosa,
Onde o espírito vai, atordoado e cego,
Cair, entre soluços,
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,
Ou pode equilibrar-se em admirável base
Estética e profunda,
Assim, bem como o outro, à mais radiosa altura.

Deves sondá-la bem nesta segunda fase.
Precisas para isso uma alma mais fecunda.
Precisas de sentir a artística loucura...
 


AO DECÊNIO DE CASTRO ALVES

Quem sempre vence é o porvir!
No espadanar das espumas
Que vão à praia saltar!
Nos ecos das tempestades
Da bela aurora ao raiar,
Um brado enorme, profundo,
Que faz tremer todo o mundo
Se deixa logo sentir!
É como o brado solene,
Ingente, Celso, perene,
É como o brado: - Porvir!

Pergunta a onda: - Quem é?..,
Responde o brado: - Sou eu!
Eu sou a Fama, que venho
C'roar o vate, o Criseu!
Dormi, meu Deus, por dez anos
E da natura os arcanos

Não posso todos saber!
Mas como ouvisse louvores
De glória, gritos, clamores,
Também vim louros trazer.

Fatalidade! - Desgraça!
Fatalidade, meu Deus!
Passou-se um gênio tão cedo,
Sumiu-se um astro nos céus!
As catadupas d'idéias,
De pensamento epopéias
Rolaram todas no chão!
Saindo a alma pra glória
Bradou pra pátria - vitória!
Já sou de vultos irmãos!

Foi Deus que disse: - Poeta,
Vem decantar a meus pés.
Na eternidade há mais luz,
Dão mais valor ao que és.
Se lá na terra tens louros,
Receberás cá tesouros
De muitas glórias até!
Terás a lira adorada
C'o divo plectro afinada
De Dante, Tasso e Garret!

Então na terra sentiu-se
UM grande acorde final!
O belo vate brasílio
Pendeu a fronte imortal!
O negro espaço rasgou-se
E aquele gênio internou-se
Na sempiterna mansão.
A sua fronte brilhava
E o áureo livro apertava
Sereno e ledo na mão...

E o mundo então sobre os eixos
Ouviu-se logo rodar!
É que ele mesmo estremece
A ver um vulto tombar.

É que na queda dos entes
Que são na vida potentes,
Que têm nas veias ardor,
Há cataclismos medonhos
Que só sentimos em sonhos
Mas que nos causam terror!...

E o coração s'estortega
E s'entibia a razão!
No peito o sangue enregela
E logo a história diz: - Não!
Não chore a pátria esse filho,
Se procurou outro trilho
Também mais glória me deu!
E quando os séculos passarem
Se hão de tristes curvarem
Enquanto alegre só eu?...

Oh! Basta! Basta! Silêncio!
Repousa, vate, nos Céus!
Que muito além dos espaços
Os cantos subam dos teus!
Se nesta vida d'enganos
Não são bastante os humanos
Pra te render ovações!
Perdoa os fracos, ó gênio,
Que pra cantar teu decênio
Somente Elmano ou Camões!

BRAÇOS

Braços nervosos, brancas opulências,
brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
alvuras castas, virginais alvuras,
latescências das raras latescências.

As fascinantes, mórbidas dormências
dos teus abraços de letais flexuras,
produzem sensações de agres torturas,
dos desejos as mornas florescências.

Braços nervosos, tentadoras serpes
que prendem, tetanizam como os herpes,
dos delírios na trêmula coorte ...

Pompa de carnes tépidas e flóreas,
braços de estranhas correções marmóreas,
abertos para o Amor e para a Morte!



ENCARNAÇÃO

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos...
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...

Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as Visões do amor dormem geladas...

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!



VELHAS TRISTEZAS

Diluências de luz, velhas tristezas
das almas que morreram para a luta!
Sois as sombras amadas de belezas
hoje mais frias do que a pedra bruta.
Murmúrios ncógnitos de gruta
onde o Mar canta os salmos e as rudezas
de obscuras religiões — voz impoluta
de todas as titânicas grandezas.

Passai, lembrando as sensações antigas,
paixões que foram já dóceis amigas,
na luz de eternos sóis glorificadas.

Alegrias de há tempos! E hoje e agora,
velhas tristezas que se vão embora
no poente da Saudade amortalhadas! ...
 


DANÇA DO VENTRE

Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.
Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!
 


FLOR DO MAR

És da origem do mar, vens do secreto,
do estranho mar espumaroso e frio
que põe rede de sonhos ao navio
e o deixa balouçar, na vaga, inquieto.
Possuis do mar o deslumbrante afeto,
as dormências nervosas e o sombrio
e torvo aspecto aterrador, bravio
das ondas no atro e proceloso aspecto.
Num fundo ideal de púrpuras e rosas
surges das águas mucilaginosas
como a lua entre a névoa dos espaços...
Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
auroras, virgens músicas marinhas,
acres aromas de algas e sargaços...



DILACERAÇÕES

Ó carnes que eu amei sangrentamente,
ó volúpias letais e dolorosas,
essências de heliotropos e de rosas
de essência morna, tropical, dolente...
Carnes, virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente...

Passai, dilaceradas pelos zelos,
através dos profundos pesadelos
que me apunhalam de mortais horrores...

Passai, passai, desfeitas em tormentos,
em lágrimas, em prantos, em lamentos
em ais, em luto, em convulsões, em dores...
 


SINFONIAS DO OCASO

Musselinosas como brumas diurnas
descem do ocaso as sombras harmoniosas,
sombras veladas e musselinosas
para as profundas solidões noturnas.
Sacrários virgens, sacrossantas urnas,
os céus resplendem de sidéreas rosas,
da Lua e das Estrelas majestosas
iluminando a escuridão das furnas.
Ah! por estes sinfônicos ocasos
a terra exala aromas de áureos vasos,
incensos de turíbulos divinos.
Os plenilúnios mórbidos vaporam ...
E como que no Azul plangem e choram
cítaras, harpas, bandolins, violinos ...



ACROBATA DA DOR

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço. . .

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.
 


MÚSICA DA MORTE

A música da Morte, a nebulosa,
estranha, imensa música sombria,
passa a tremer pela minh'alma e fria
gela, fica a tremer, maravilhosa ...
Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
letes sinistro e torvo da agonia,
recresce a lancinante sinfonia
sobe, numa volúpia dolorosa ...

Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
tremenda, absurda, imponderada e larga,
de pavores e trevas alucina ...

E alucinando e em trevas delirando,
como um ópio letal, vertiginando,
os meus nervos, letárgica, fascina ...
 


Fontes: http://www.jornaldepoesia.jor.br/csousa.html
            http://www.brasilescola.com/literatura/cruz-sousa.htm

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